sábado, 15 de junho de 2013

Arthur da Távola


    1. AFINIDADE
      A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil,
      delicado e penetrante dos sentimentos.
      O mais independente.

      Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos,
      as distâncias, as impossibilidades.
      Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação,
      o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido.
      Afinidade é não haver tempo mediando a vida.

      É uma vitória do adivinhado sobre o real.
      Do subjetivo sobre o objetivo.
      Do permanente sobre o passageiro.
      Do básico sobre o superficial.
      Ter afinidade é muito raro.

      Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.
      Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois
      que as pessoas deixaram de estar juntas.
      O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples
      e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.

      Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos
      fatos que impressionam, comovem ou mobilizam.
      É ficar conversando sem trocar palavra.
      É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.

      Afinidade é sentir com.
      Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo.
      Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado.
      Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios.

      Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.
      É olhar e perceber.
      É mais calar do que falar.
      Ou quando é falar, jamais explicar, apenas afirmar.

      Afinidade é jamais sentir por.
      Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.
      Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.
      Compreende sem ocupar o lugar do outro.
      Aceita para poder questionar.
      Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.

      Só entra em relação rica e saudável com o outro,
      quem aceita para poder questionar.
      Não sei se sou claro: quem aceita para poder questionar,
      não nega ao outro a possibilidade de ser o que é, como é, da maneira que é.
      E, aceitando-o, aí sim, pode questionar, até duramente, se for o caso.
      Isso é afinidade.
      Mas o habitual é vermos alguém questionar porque não aceita
      o outro como ele é. Por isso, aliás, questiona.
      Questionamento de afins, eis a (in)fluência.
      Questionamento de não afins, eis a guerra.

      A afinidade não precisa do amor. Pode existir com ou sem ele.
      Independente dele. A quilômetros de distância.
      Na maneira de falar, de escrever, de andar, de respirar.
      Há afinidade por pessoas a quem apenas vemos passar,
      por vizinhos com quem nunca falamos e de quem nada sabemos.
      Há afinidade com pessoas de outros continentes a quem nunca vemos,
      veremos ou falaremos.

      Quem pode afirmar que, durante o sono, fluidos nossos não saem
      para buscar sintomas com pessoas distantes,
      com amigos a quem não vemos, com amores latentes,
      com irmãos do não vivido?

      A afinidade é singular, discreta e independente,
      porque não precisa do tempo para existir.
      Vinte anos sem ver aquela pessoa com quem se estabeleceu
      o vínculo da afinidade!
      No dia em que a vir de novo, você vai prosseguir a relação
      exatamente do ponto em que parou.
      Afinidade é a adivinhação de essências não conhecidas
      nem pelas pessoas que as tem.

      Por prescindir do tempo e ser a ele superior,
      a afinidade vence a morte, porque cada um de nós traz afinidades
      ancestrais com a experiência da espécie no inconsciente.
      Ela se prolonga nas células dos que nascem de nós,
      para encontrar sintonias futuras nas quais estaremos presentes.
      Sensível é a afinidade.
      É exigente, apenas de que as pessoas evoluam parecido.
      Que a erosão, amadurecimento ou aperfeiçoamento sejam do mesmo grau,
      porque o que define a afinidade é a sua existência também depois.

      Aquele ou aquela de quem você foi tão amigo ou amado, e anos depois
      encontra com saudade ou alegria, mas percebe que não vai conseguir
      restituir o clima afetivo de antes,
      é alguém com quem a afinidade foi temporária.
      E afinidade real não é temporária. É supratemporal.
      Nada mais doloroso que contemplar afinidade morta,
      ou a ilusão de que as vivências daquela época eram afinidade.
      A pessoa mudou, transformou-se por outros meios.
      A vida passou por ela e fez tempestades, chuvas,
      plantios de resultado diverso.

      Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças,
      é conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas,
      quantos das impossibilidades vividas.

      Afinidade é retomar a relação do ponto em que parou,
      sem lamentar o tempo da separação.
      Porque tempo e separação nunca existiram.
      Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida,
      para que a maturação comum pudesse se dar.
      E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais,
      a expressão do outro sob a forma ampliada e
      refletida do eu individual aprimorado.
      Arthur da Távola

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